sábado, 27 de abril de 2013

REINALDO

Reinaldo Ferreira pertencia à geração que entrou na vida ao estrépito dos canhões da Grande Guerra. À sua volta, tudo era turbilhão e vertigem. Dotado de uma sensibilidade quase infantil, absorveu todas as inquietações e angústias que 1914 lançou no mundo, revoluções e atentados, fortunas e misérias, glórias e baixezas, espionagens e crimes... Foi assim que ele compreendeu a vida. E assim a descreveu a sua pena de jornalista, em crónicas modelares, em reportagens de mistério e fantasia.
Os que somos da geração anterior, ainda sentimos durante alguns anos a noção de equilíbrio social, de harmonia, de estabilidade nos interesses criados. Habitávamos uma casa talvez envelhecida, mas com todos os compartimentos em ordem. A mobília, gasta pelo uso, estava sempre no seu lugar. As paredes davam uma impressão de solidez eterna. Pensávamos que seria sempre assim. Fazíamos versos e líamos romances.
Depois, o mundo entrou em obras. Surgiram em toda a parte arquitectos audaciosos, que mandavam implacàvelmente deitar abaixo. Nalgumas salas só há estilhaços de cadeiras. As paredes ameaçam desabar. Os vigamentos tremem. Os alicerces mal suportam o peso das ruínas ainda em pé. Como deve ser bom habitar o mundo quando as obras receberem os acabamentos finais e tudo esteja outra vez no seu lugar, o tempo a deslizar com harmonia, num ritmo suave! 
Reinaldo Ferreira, que aflorou todas as formas literárias com a mesma espontaneidade exuberante e criadora, não quis que da sua pena saísse a descrição do drama pungente que foi a sua existência, em certos lances. Se o fizesse, não precisaria de socorrer-se da sua imaginação prodigiosa para despertar algumas lágrimas de piedade nos olhos de quem os lesse.
Pobre Reinaldo! Sofreu demasiadamente as angústias da época em que viveu. Foi ela que o matou.

Herculano Nunes, in O Livro de Repórter X, edição de Mário Domingues, Lisboa, Agência Editorial Brasileira, s.d.

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