terça-feira, 22 de abril de 2014

4 ou 5 págs.: ASSUNTA -- UMA HISTÓRIA

O homem que fez com que eu redescobrisse o gosto pela literatura de viagens -- ou, melhor: que me mostrou que a viagem enquanto narrativa é algo que ainda pode fazer sentido neste tempo (que já nem é bem o seu, mas isso é outro assunto...) --, Bruce Chatwin (19140-1989) e Na Patagónia, inicia aquele que seria o seu último livro, O que Faço Eu Aqui?, na cama de um hospital inglês. Embora a sua morte tenha sido atribuída a um vírus exótico contraído num dos muitos périplos que realizou, soube-se, anos mais tarde, que morrera vítima de sida.
Livro deliciosamente híbrido, as qualidades literárias de Chatwin, poder de observação, humor discreto e cultura vasta, são-nos oferecidas generosamente.
Assunta é uma empregada de limpeza do hospital, italiana casada com britânico, que o escritor doente acolhe sempre com júbilo no quarto, ao qual empresta um "um calor bem meridional" -- um escape à monotonia gélida, mesmo quando febril, daquela atmosfera asséptica e deprimente. Hoje, Assunta queixa-se duma vizinha, que, entre a multidão de animais domésticos que alberga em casa, paredes meias com a sua, figura uma pitão ou jibóia, a "Puppet" ("Boneca") -- que o sotaque latino de Assunta muda para "Poppet"... O bicho saíra de casa e refugiara-se na casota de jardim da transida empregada.

O incipit - «O que faço eu aqui?»
Um parágrafo: «-- Sr. Bruce... É a vizinha do lado... Uma mulher diabólica... Os meus filhos brincam no jardim e ela grita: "Os seus filhos fazem muito barulho. Meta-os dentro de casa.». Ela não acredita em Deus nem em nada... Abortou duas vezes... Só gosta de animais... Tem cão... Tem gato... Tem coelhos... e tem Poppet...»

Bruce Chatwin, O que Faço Eu Aqui [1989], tradução de José Luís Luna, Lisboa, Quetzal Editores, 1993, pp. 11-12.

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