quinta-feira, 22 de maio de 2014

sim, a quê?...

«Em casa, de novo parado, de novo quieto, a mesma dor que há tão pouco me cortava o ombro e que, apesar desse pouco tempo, eu me habituara já a conhecer e até, de alguma forma, a estimar tanto como a odiar. Afinal a que é que não nos habituamos?»

Sérgio Luís de Carvalho, Anno Domini 1348 (1990)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

...ou a emoção está em nós

«Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse os dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro.»

Raul Brandão, Memórias I (1919)

terça-feira, 20 de maio de 2014

livros que me apetecem

Da nova revista da Fnac, a Estante (o lettering é fantástico, olho e invariavelmente leio "estuante", o que também se aplica...), os livros que me apetecem, mais:
O Enredo Conjugal, de Jeffrey Eugenides (Dom Quixote);
Gostamos Todos da Glenda, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro);
O Meu Avô, de Catarina Sobral (Orfeu Mini);
Regresso ao Admirável Mundo Novo (Antígona). 





E recomendo, muitíssimo, Maus, de Art Spiegelman (Bertrand)



segunda-feira, 19 de maio de 2014

4 ou 5 págs.: - CARTA DE DESPEDIDA

Um espírito escreve uma carta, despedindo-se da rapariga com quem se encontrara, e que lhe lembrara uma outra que beijara no bosque de Turó del Mig (que suponho fique para os lados de Barcelona) -- com o pormenor de que esta, quando o espectro-narrador redige a missiva, «deve[ria] ser já avó.»

Início: «Poderia ter feito de ti um fantasma, mas eu amava a tua realidade.»
um parágrafo: «Vejo-me obrigado a dizer-te adeus... Se te houvesse convertido num fantasma, talvez um dia qualquer nos encontrássemos juntos para além do satélite artificial que os americanos querem atirar para o espaço: seríamos como dois lençóis flutuando entre a terra e a lua; talvez uma noite qualquer provocássemos um eclipse.»

Fèlix Cucurull, «Carta de despedida», tradução de Manuel de Seabra ["Antologia do Conto Moderno"], Coimbra, Atlântida, 1959, pp. 81-85.

domingo, 18 de maio de 2014

4 ou 5 págs.: O REI IMAGINÁRIO

Um monólogo que nos apresenta a figura grotesca do Teles, um ex-magistrado destituído de funções por corrupção, tal foi o resultado do vício do jogo. Oriundo de boas famílias, a mulher morre-lhe de desgosto e uma das duas filhas, da tísica, enquanto a outra se torna prostituta ("Desgraça acarreta desgraça.") Mas é na degradação que o Teles se encontra, é aí que ele se confronta com a sua verdade mais íntima. Fantasista, sonha-se rei absoluto, elocubrando vinganças sobre todos com quanto se cruzou na via para a desgraça; lúcido, apercebe-se de que os códigos legislativos nunca poderão fazer justiça à alma  de um homem.

início: «No calabouço do Governo Civil.»
excerto: «Que distância há entre o homem e o homem? entre o homem correcto, o homem e todos os dias e o homem capaz de praticar um crime?... Que mixórdia! e que canalha eu sou quando deparo com o fundo de mim mesmo!... Mas não me julguem infeliz. Não sou infeliz. Devo confessar que depois que sou desgraçado é que me sinto mais feliz. Encontrei-me.»

Raul Brandão, «O rei imaginário», Teatro [1923], estudo introdutório de Luiz Francisco Rebello, Lisboa, Editorial Comunicação, 1986, pp. 119-123.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

livros que me apetecem

do último JL:
As Aventuras de Nugunga, Pepetela (Caminho)
Do Colonialismo como Nosso Impensado, Eduardo Lourenço (Gradiva)
Kassel não Convida à Lógica, Enrique Vila-Matas (Teodolito)
Mudar o Mundo, Noam Chomsky (Bertrand)
Nova Teoria do Sebastianismo, Miguel Real (Dom Quixote)
Poemas Escolhidos das Irmãs Brontë (Relógio d'Água)
Sobre Literatura, Umberto Eco (Relógio d'Água)


 
 
  


quinta-feira, 15 de maio de 2014

leituras de 2014 - #25 CARTAS A UMA JOVEM AMIGA

Nas livrarias passo sempre ao largo da secção "espiritualidades". No livro em apreço, singelas florinhas debruadas em tons suaves, numa colecção chamada "Talismã", fazem logo recear o pior.
Porque li, então, o Jiddu? Porque nas páginas da Renovação -- revista da década de 1920, publicada pela anarco-sindicalista Confederação Geral do Trabalho (CGT), Ferreira de Castro escreveu sobre este para-guru, dando nota da perspectiva crítica que era a sua. Peguei, então, neste livrinho (podia ter sido outro qualquer); e embora não fosse tão mau quanto temia, percebi bem as razões das reservas do futuro autor de A Selva.
Krishnamurti recomenda a impassibilidade, o nada -- nada querer, a nada aspirar -- como forma de chegar à felicidade. Ora isto é profundamente problemático em sociedades radicalmente desiguais, como o são a generalidade das modernas comunidades humanas, a começar pela indiana, de onde o autor era originário, embora desde muito cedo se radicasse no Ocidente). O efeito prático das ideias de J.K., embora aliciantes em abstracto (quem não aspira a nada está receptivo a acolher tudo o que de bom ou substancial a vida pode dar...), acaba por ter um efeito perverso: quando o fraco não reage ao forte, agrupando-se, unindo forças, não passará da condição de capacho. É uma evidência que nenhuma fé na remissão por alegadas vidas futuras ou recompensas espirituais presentes poderá contrariar. Ferreira de Castro não podia, pois, caucionar estes conceitos de pura desistência e amorfismo -- pelo menos, na aparência.
O que extraio deste livrinho é, basicamente, isto: segundo Krishnamurti, o homem deverá forjar para si uma outra realidade, paralela à existente e por esta intocável. É evidente que o despojamento, numa sociedade de consumo, é uma atitude benéfica e inteligente; o combate ao egocentrismo, idem; o mesmo para a comunhão íntima com a Natureza. Castro subscreveu estas ideias ao longo da sua obra, mas a diferença fundamental é que ele sabe que nada é concedido e que a dignidade deve ser (re)conquistada -- pela força, se necessário, embora o seu idealismo almeje por uma mudança de mentalidades. Para Krishnamurti, a mudança interior auto-impõe-se, voluntariamente, portanto; mas ao recusar o conflito, em vez de criar um paraíso  terrestre, está a arregimentar legiões de escravos, de dependentes -- é impossível ser de outro modo.
"Feliz é o homem que é nada." -- acaba por ser a declaração que melhor ilustra o pensamento do autor. Ideia inaceitável. Inaceitável num mundo em que pontifica o bicho-homem; e também porque do nada nunca a humanidade teria usufruído de um Beethoven, por exemplo.   2**

ficha: 
Autor: Jiddu Krishnamurti
título: Cartas a uma Jovem Amiga
título original: Letters To A Young Friend: «Happy Is The Man Who Is Nothing»
tradução: Joaquim Palma
colecção: "Talismã" # 14
editora: Editorial Presença
local: Lisboa
ano: 2008
impressão: Multitipo-Artes Gráficas
págs.: 59

terça-feira, 13 de maio de 2014

trabalho árduo, cólera, desilusão

«Quanto ao resto, tudo o que de agradável tinha sido dito sobre O Regresso (e têm falado dele em várias ocasiões) acorda em mim a mais viva gratidão, pois sei quanto a escrita desta fantasia me custou de trabalho árduo, cólera e desilusão.»

Joseph Conrad, Histórias Inquietas (1898)
tradução: Carlos Leite

sexta-feira, 9 de maio de 2014

leituras de 2014 - #24 BARRANCO DE CEGOS


Barranco de Cegos (1961) conta o fim de um tempo, entre o Ultimato inglês (1890) e o pós-5 de Outubro de 1910, e revela-nos uma família de grandes lavradores ribatejanos, cujo chefe é uma personagem inesquecível: Diogo Relvas, homem excessivo, cruel e reaccionário, fiel a uma tradição agrária que vê na terra as virtudes ancestrais duma nação, e no desenvolvimento industrial a condenação da pátria, motivada pela cupidez e pela ambição de poder de uma elite cega -- cegos conduzindo cegos, uns e outros na iminência de caírem num barranco, de onde dificilmente se sairá. Relvas carrega consigo o peso dos antepassados, regendo-se por uma ética abstracta, inflexível quanto ao essencial -- a manutenção do poder: simbólico, através dos cerimoniais do mando, e de facto,  pela posse efectiva do agro; inflexível no essencial, moderadamente maleável quanto a questões mais prosaicas. As restantes personagens, em especial os filhos, órfãos de mãe, débeis, volúveis -- um deles esmagado pelo peso excessivo do progenitor --, as duas filhas, Milai e Maria do Pilar, fortes e marcadas, complexas no lidar com o patriarca, dão profundidade ao romance. Outras personagens secundárias, em especial as populares, são também fundamentais; mas esta é uma história de senhores, homens senhores doutros homens.
No prefácio que escreveu em 1964, Mário Dionísio, que não era de elogio fácil e se afastara já do PCP, não hesita em classificar o livro como "um dos grandes romances de toda a nossa história literária".
Barranco de Cegos é, com efeito, literatura da boa, da que conta, da que interessa, da que constrói identidade, da que dá substrato à comunidade de que emana -- e também da que experimenta, da que burila, da que arrisca. Para além de todas as classificações que cada vez fazem menos sentido, a não ser numa abordagem historiográfica, trata-se de neo-realismo, e do melhor -- isto é: não evidenciando a vulgata que simplifica e sectariza, é suficientemente amplo para ser subscrito por todos quanto comungam de preocupações afins, sem que com isso o autor traia (e se traia) o escopo ideológico que lhe subjaz. O final do romance, magistral, traz-nos uma atmosfera que dir-se-ia paralela à do realismo mágico, que o recém-falecido Gabriel García Márquez consagraria anos mais tarde.
Redol é, sempre foi -- mesmo no inaugural Gaibéus (1939) -- um romancista de raça, um criador de mundos, de atmosferas, de personagens de carne e osso. Barranco de Cegos evidencia-o de tal forma que -- para desgosto de alguns cadáveres -- se inscreve duradouramente no nosso cânone literário.   5*****

Ficha:
Autor: Alves Redol
título: Barranco de Cegos
editora: Edições Avante!
local: Lisboa
ano: 1982
(ano da 1.ª edição: 1961)
impressão: Guide-Artes Gráficas, Lisboa
ilustrações: Jorge Pinheiro
págs.: 414
tiragem: 5000

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Shakespeare

«Shakespeare: o encontro de uma rosa com um machado...»
E.M. Cioran, Silogismos da Amargura
(trad.: Manuel de Freitas)

domingo, 4 de maio de 2014

leituras de 2014 #23 - ALDEIA DAS ÁGUIAS

Tinha alguma expectativa em relação a este livro. Nunca lera nada do autor -- à parte alguns artigos ou contos dispersos --, é talvez o único título seu que não caiu em esquecimento completo, mercê do Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências que lhe foi atribuído em 1939, ano da edição. Andava com ele  há anos na cabeça: Aldeia das Águias, título sugestivo, evocando com a literalidade que nome e capa impunham -- e que veio a verificar-se --, uma narrativa situada numa área semi-isolada, em faldas e escarpas duma província nortenha.
À medida que ia avançando, a desilusão era crescente. Uma oposição cidade-campo já então com barbas, Júlio Dinis entrado pelo século XX adentro, sem o talento, o humor e a mestria do autor d'A Morgadinha dos Canaviais. As personagens são esquemáticas, previsíveis quase caricaturas: irmão mau e irmão bom -- um, velhaco, vaidoso, desprezível, quase psicopata; honrado, generoso e abnegado, o outro; um amigo de infância do primeiro, de estrato social muito abaixo, personagem sacrificial da narrativa, quase um santo, mais do que a criada desonrada pelo "menino", que arrostou com a fúria paterna, vindo, obviamente, mais tarde a ser redimida pelo irmão bom... As cenas de cidade -- Porto -- são pobres e a linguagem é confrangedora e insuportavelmente banal e magazinesca.
Há algumas boas páginas -- melhor fora --, em especial as que são centradas na aldeia de Sedielos (Régua), terra-natal do autor: o quadro de caça às águias, predadoras dos rebanhos, que ciclicamente a aldeia em peso promove, é do melhor que o livro tem. E nem falta o maluquinho de aldeia, o Taranta, a dar a tonalidade trágica de acento camiliano, que narrativas deste género exigiam.
Poderia ser um bom romance em mãos de mestre. Mesmo que em 1939, Ferreira de Castro e José Régio, cada um a seu modo, houvessem já transformado o romance português -- este com o Jogo da Cabra Cega (1934); aquele, a partir de Emigrantes (1928) -- não se seguia forçosamente que um romance mais académico tivesse  de ser por força dispensável (quem desdenha, por exemplo de Rachmaninov por antes dele ter havido Schönberg ou Debussy ou Stravinski? Só um pateta); nem seria preciso que o autor tentasse equiparar-se a Aquilino Ribeiro -- de quem está a anos-luz. Bastaria não ter sido tão acomodatício, previsível, superficial; ou, estilisticamente, afastar-se da vulgaridade da escrita postiça, no seu dar-se ares modernaços, para que pudesse ser algo que se lesse a contento, 75 anos depois. Mas não, já era irrelevante quando saiu dos prelos.   2**

ficha:
Autor: Guedes de Amorim
título: Aldeia das Águias (1939)
colecção: «Minerva de Bolso» #26 
editora: Editorial Minerva
local: Lisboa
ano: 1973
págs.: 199
impressão: Oficinas da Ed. Minerva
capa: Manuel Dias