quinta-feira, 2 de julho de 2015

uma certa Lisboa dos anos vinte

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«No "Cabeleireiro da moda", em pleno Chiado, trava-se conhecimento com duas elegantes» -- título do capítulo inicial de O Preto do «Charleston», de Mário Domingues, publicado em 1930.

Estamos diante de um retrato de uma certa Lisboa dos anos vinte, boémia e quase clandestina. A Lisboa de mulheres emancipadas (algumas) ou em vias disso (ainda poucas), dos clubes nocturnos, da idade do jazz-band exaltada por António Ferro, da banalização do modernismo de que lemos aqui banal tradução, das mulheres de cabelo curto, à rapaz, do irromper de sexualidades proibidas e ainda reprimidas, do bulício do Chiado como montra de vaidades -- neste particular, prosseguindo uma característica das décadas precedentes.
A primeira "elegante", Odette, afirmando-se livre -- mas cuja liberdade consiste, em boa medida, na livre escolha dos amantes, à custa de quem vive. 
Estamos longe, portanto duma mulher emancipada, na acepção límpida da palavra, nem o narrador no-la quer mostrar enquanto tal; para já, temos o estereótipo de uma mulher que revela, a um tempo, carácter oportunista e audacioso. Audacioso não apenas por se tratar duma "elegante de profissão" (a fronteira com a prostituição é pouco menos que ténue), oriunda de família tradicional, alguém que frequenta por prazer e caça o Roma Clube; audaciosa ainda pela afirmação da sua liberdade sexual. O diálogo com Ilda Fonseca -- a outra elegante com modo de vida quase idêntico, porém sem pisar demasiado o risco das convenções -- na sala de espera do cabeleireiro é revelador pelo à-vontade e desdém com que se refere a Tomé, o preto do charleston, um bailarino negro com quem mantivera uma breve relação: «-- O preto do "charleston"é um homem banal, como os outros homens. Tive-o por amante, como poderia ter um cão de raça exótica... Mas aborreceu-me depressa. É insuportável o seu sentimentalismo de sertão. [...] Tomé [...] não foi um amante, foi um capricho, um bizarro capricho que me tentou, que te tentaria a ti Ilda, se não fosses tão burguezinha e se tivesses, como eu, um temperamento insaciável de inéditos prazeres e de raras sensações.»
Como se vê pela foto junta, Mário Domingues (1899-1977), nascido numa roça de São Tomé, filho duma "contratada" angolana, herdara a tez escura e os traços fisionómicos da mãe, de quem foi separado ainda muito novo, tendo vindo para Lisboa, onde viveu e foi educado pela avó paterna. Jornalista brilhante, vindo das fileiras do anarco-sindicalismo de A Batalha, atravessou boa parte do século passado como free lancer, sendo autor prolífico não apenas das ficções assinadas com o seu nome civil, mas também de muito livro policial, recorrendo a pseudónimos anglo-saxónicos. O reconhecimento como escritor para o grande público viria nas últimas décadas de vida, com as narrativas historiográficas e biografias de reis e  personagens marcantes da história de Portugal.
O meu principal interesse nO Preto do Charleston reside no tratamento da personagem Tomé: até que ponto haverá ou não um reflexo de auto-imagem nessa Lisboa de entre-guerras. 

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