quarta-feira, 23 de março de 2016

Maria Archer, «Os meus olhos abertos» - A PRIMEIRA VÍTIMA DO DIABO #3

«O juiz olha para mim de frente, fita-me nos olhos, quer apanhar-me a alma.» (incipit)

1 parágrafo:
«Elas não viram o nosso lar por dentro. Uma prisão. O pai, caixeiro de praça, à noite porteiro dum teatro, só ia a casa para comer e dormir mas deixava-nos ordens e ai de nós se não as cumpríssemos! A nossa vida regulava-se pelo terror. Às vezes, inopinadamente, entrava-nos pela porta em passos leves de ladrão, surpreendia-nos nos afazeres, corria os aposentos de ponta a ponta, abrindo tudo, vistoriando os armários, procurando debaixo das camas. Demorava-se uns minutos, olhando-nos ferozmente, em algoz, rebuscando não sei o quê, talvez os amantes escondidos, talvez as amigas que nos proibia de receber. Depois saía, remoendo palavras duras, e insatisfeito, rancoroso, apesar de não ter encontrado rabo por onde pegar-nos. Creio que o seu secreto desejo seria apanhar-nos em falta, uma grande falta, deboches, paródias, que justificassem as suas suspeitas e lhe permitissem castigar-nos na medida da fúria em que se debatia.» (1954)

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